6/27/2023
Personalidade

Narcisismo: traço psicológico, transtorno de personalidade ou marco cultural do século 21?

O narcisismo caiu na boca do povo e esse termo vem sendo empregado pelo senso comum rotineiramente. Mas a seguinte confusão conceitual frequentemente se instala: afinal de contas, o narcisismo pode ser considerado algo normal no comportamento humano, ou se enquadra na esfera do patológico? Trata-se de uma dimensão da personalidade, de um tipo de transtorno ou, de maneira mais abrangente, de uma característica psicológica e sociocultural predominante de nossos tempos?

O narcisismo caiu na boca do povo e esse termo vem sendo empregado pelo senso comum com uma frequência cada vez maior. Mas a seguinte confusão conceitual volta e meia se instala: afinal de contas, ele pode ser considerado algo normal no comportamento humano, ou se enquadra na esfera do patológico? Trata-se de uma dimensão da personalidade, de um tipo de transtorno ou, de maneira mais abrangente, de uma característica psicológica e sociocultural predominante de nossos tempos?

Acertou quem pensou que é tudo isso.

Porém, quais critérios demarcam as manifestações mais corriqueiras daquelas que tipificam um transtorno? Quais seriam as principais diferenças entre ser narcisista e ter uma autoestima, autoconfiança e amor próprio elevados? E, no âmbito macro, de que maneiras o narcisismo cultural é transmitido em larga escala e potencializado, tornando-o uma característica tão saliente da psicologia contemporânea?

Esse artigo se propõe a elucidar essas questões e concluir trazendo alguns elementos de reflexão sobre o impacto do narcisismo nas relações humanas do século 21.

O que é narcisismo?

Narcisismo como dimensão da personalidade

O narcisismo é um dos 3 pilares que compõem a chamada tríade sombria da personalidade (os outros dois são a psicopatia e o maquiavelismo).

O termo narcisista se refere a alguém que tenha um interesse excessivo em si mesmo, pouca empatia pelos outros, e crenças de superioridade acompanhadas de um sentimento de que se merece tratamentos especiais. Sua origem vem da mitologia grega, onde Narciso foi um herói exageradamente vaidoso, que rejeitou o amor dos outros e, em vez disso, apaixonou-se por seu próprio reflexo em um lago.

O narcisismo é, então, uma característica psicológica ligada à necessidade de adulação e ao desejo desenfreado por confetes, aplausos e de ser venerado por seus feitos.

Ele remete a um traço de personalidade situado num continuum, no qual todos nós nos inserimos em alguma posição: umas pessoas pontuarão alto e outras pontuarão baixo nas escalas que o medem (a mais conhecida é o Inventário de Personalidade Narcisista). Isso significa que, assim como em toda e qualquer dimensão da personalidade ou característica psicológica, há uma grande variabilidade interindividual de intensidade de narcisismo. O que para uns é tido como repugnante ou inadmissível, para outros pode ser natural e corriqueiro. Uma pessoa pode também ter tendências narcisistas, mas não fortes o suficiente para que seja um narcisista literalmente.

O narcisismo não é uma entidade monolítica; para melhor compreendê-lo é necessário ter isso em mente.

Por exemplo, imagine alguém extremamente autocentrado, de modo que faça com que toda interação social gire demasiadamente em torno de si, não demonstrando empatia nem interesse pelas experiências alheias, nem dando espaço para o interlocutor se expressar. Isso configura um típico comportamento narcisista. Apesar disso, pessoas assim podem também ser extrovertidas, divertidas e sedutoras.

Mas há outras formas de ser narcisista. Imagine uma pessoa tímida, amarga e insegura, que constantemente reclama do não reconhecimento de seu suposto talento (que muitas vezes somente ela própria vê), nutrindo ressentimento pelas pessoas não se curvarem a ela e o sentimento crônico de que o mundo lhe deve algo. Ou, ainda, que os reveses que lhe acometem são sempre fruto da ação dos outros, jamais assumindo sua responsabilidade.

Outra possibilidade de comportamento típico narcisista é a sistemática apresentação megalomaníaca de si, gabando-se de seus feitos e, concomitantemente, diminuindo os dos outros, numa atitude de empáfia e arrogância, além de apresentar uma reatividade agressiva a críticas ou a comentários que venham a contrariá-lo.

Vocês podem perceber com esses simples exemplos como há diferentes tipos de manifestação desse complexo traço psicológico.

Um mal entendido frequente no senso comum é a confusão semântica entre narcisismo e autoestima elevada. Muitas pessoas associam o termo narcisista a algo positivo, como, por exemplo, se amar e ter autoconfiança, que são obviamente importantes para o desenvolvimento pessoal.

Porém, não são a mesma coisa para a psicologia científica.

Primeiro porque o narcisismo vem acompanhado de uma visão distorcida e pouco realista de si, na qual uma pessoa se crê realmente superior às demais. Portanto, o narcisismo anda de mãos dadas com a arrogância e um certo desprezo ou, no mínimo, um interesse escasso pelos outros; que não necessariamente ocorre com pessoas com uma boa autoestima. Isso quer dizer que narcisistas não têm habilidades empáticas, enquanto pessoas com amor próprio, autoconfiança e autoestima saudáveis não deixam de se conectar genuinamente e tecer vínculos significativos. Outro ponto é que ter a autoestima elevada não implica em se crer mais importante nem em ter dificuldades em lidar com críticas ou em ser contrariado. Pelo contrário, uma autoestima coerente e benigna dá mais abertura e segurança para olhar e reconhecer as próprias falhas e vulnerabilidades.

A principal distinção de tipos de narcisismo é entre o narcisista grandioso e o narcisista vulnerável.

O narcisista grandioso tende a ter autoestima elevada. Na verdade, elevada de maneira desproporcional, hipertrofiada e desconectada com a realidade. Pense num ególatra ambicioso, arrogante, exibicionista, manipulador, competitivo e vaidoso. Em contrapartida, o narcisista vulnerável tem baixa autoestima e é mais ansioso e inseguro. Também tende a ter uma imagem inflada de si, porém é menos espalhafatoso e mais ressentido que o tipo anterior.

Para complicar um pouco, algumas pessoas são as duas coisas, alternando momentos de grandiosidade e exibicionismo com rompantes de vulnerabilidade e melindre.

Em termos de BIG 5, narcisistas apresentam baixa pontuação em agradabilidade, isto é, alta propensão ao antagonismo (desagradabilidade) e pouca preocupação com os outros. No narcisista grandioso, essa baixa agradabilidade se mistura com uma alta extroversão, ao passo que no narcisista vulnerável ela se mesclará com um forte neuroticismo.

No primeiro caso, a preocupação maior é em exibir-se e vangloriar-se; no último, em proteger-se. Narcisistas grandiosos tendem a ser predadores em busca de dominância social e que caçam oportunidades de aparecer e brilhar, doa a quem doer, enquanto narcisistas vulneráveis têm uma hipervigilância desmedida e acurada para detectar potenciais ameaças ao seu ego.

Em comum, a tendência de colocar-se sempre acima e à frente dos outros; o que leva a relações altamente superficiais (devido ao pouco interesse pelos sentimentos alheios) em ambos os casos.

Transtorno de Personalidade Narcisista

Outra confusão recorrente é entre o narcisismo enquanto dimensão da personalidade com o Transtorno de Personalidade Narcisista (TPN).

Qualquer característica psicológica, quando levada às suas formas extremas (seja por excesso ou por escassez), pode se transformar em um transtorno. Por exemplo, um perfeccionismo excessivo pode virar uma obsessão ou compulsão e uma tristeza crônica uma depressão. Desta forma, os transtornos de personalidade surgem de mecanismos psicológicos hiper ou atrofiados e de esquemas mentais inflexíveis, gerando modos de enfrentamento disfuncionais às situações da vida.

No caso do narcisismo, não é diferente.

O Transtorno de Personalidade Narcisista (TPN) é um padrão psicológico inflexível e desadaptativo que normalmente vem acompanhado da crença de que as regras sociais não deveriam ser aplicadas a si. Ou seja, a pessoa com TPN se acha acima da lei, com altas expectativas de tratamento especial, raramente fazendo autocríticas, admitindo arrependimento ou sua parcela de culpa nos conflitos sociais. O déficit em relacionamentos empáticos e igualitários é notório. Os comportamentos abusivos, agressivos, exploradores e irresponsáveis acabam levando essas pessoas a sofrerem sanções, afastamentos, ameaças de perda (na vida profissional e pessoal) e ultimatos sociais.   O abuso nas relações acarreta, sobretudo, em grande sofrimento psicológico para aqueles que com eles convivem. Em alguns estudos envolvendo crimes violentos, o TPN foi identificado como um marcador de risco que prediz o uso da violência contra os próprios familiares.

Com o tempo, as pessoas próximas vão percebendo um contraste importante entre a fachada externa e as impressões públicas com a experiência de vazio emocional na vida íntima, a negação das próprias vulnerabilidades e a superficialidade das relações de modo geral.

Há diferentes maneiras de se manifestar esse transtorno:

  • Tendências a se perceber como onisciente - o indivíduo mantém uma postura de absoluta

autoridade, sendo demasiadamente crítico e tendendo a monopolizar as conversas e ditar ordens ao invés de dialogar;

  • Obsessão pela aparência – o culto à imagem alimenta a compulsão por doses regulares de louvores;
  • Crenças de invencibilidade - autoconfiança e percepção de controle irrealistas;
  • Tendência a fantasiar – crença de que se pode ter e fazer o que quiser.  

Narcisismo Cultural

Além de tudo isso, o narcisismo também carrega uma dimensão cultural, assumindo o status de marcador psicológico do século 21 num âmbito mais macro. Cada época tem valores morais predominantes, tendências psicológicas mais presentes e, portanto, comportamentos sociais que são mais frequentes em relação a outros períodos históricos.

Nunca as pessoas foram tão obcecadas por si mesmas.

Nunca tantas selfies foram tiradas, tantos feeds das redes sociais alimentados de maneira homogênea e repetitiva (por vezes, enfadonha) com sequências intermináveis de fotos de si. Nunca se atribuiu tanta importância à própria opinião, nem tantas músicas enaltecendo a si mesmo foram compostas. Acredite em você e confie na sua intuição são mantras da nossa época. Mas e quando estamos equivocados? E todos os nossos vieses e mecanismos não conscientes? Uma boa dose de autocrítica e de ceticismo são extremamente saudáveis para nossa evolução interior, mas a mensagem que mais circula nos livros de autoajuda e outros meios de comunicação é a de que devemos nos agarrar às nossas certezas e a convicção de que somos ultra especiais.

Os feeds se transformaram em bolhas sociais e câmaras de eco que fazem com que as pessoas superestimem suas visões e interpretações de mundo e vivam, muitas vezes, numa falsa percepção de que o mundo concorda com ela: a famosa ilusão de unanimidade ou ilusão de consenso. Pseudoexperts nas mais variadas áreas de conhecimento pregam sermões a partir da leitura de um texto do wikipedia.

A autobajulação, o desejo de ser admirado e a busca desenfreada por fama e atenção são comportamentos tão recorrentes nos tempos atuais que alguns autores de Psicologia Social afirmam que estamos vivendo uma epidemia de narcisismo.

Numa sociedade ultracompetitiva, materialista e centrada na aquisição e na exibição de bens de consumo, a busca por fama e atenção são valores altamente difundidos.

Um fator que influencia o aumento do narcisismo nas novas gerações é a permissividade excessiva dos pais. Eles muitas vezes não sabem contrariar seus filhos e o paparico exagerado é uma das raízes de uma geração mais mimada, com baixa tolerância à frustração e desejos de consumo desenfreado. Saber colocar limites é fundamental para o desenvolvimento da humildade e da autocrítica, características ausentes em pessoas narcisistas.

A superproteção e monitoramento constante dos filhos também pode alimentar fantasias de que se é ultra especial. Por exemplo, pais que não aceitam notas baixas atribuídas a seus filhos e os incitam a peitar professores numa atitude desrespeitosa querendo eles próprios ditarem as regras. Entram constantemente em conflitos com terceiros para protegê-los. Sem falar que o narcisismo dos pais pode ser transmitido aos filhos.

O termo helicopter parenting designa a possibilidade de pais acompanharem seus filhos a cada passo com muita facilidade devido à hiperconectividade que a revolução digital trouxe para nossas vidas. O imediatismo e a impaciência também são sintomas sociais da tecnologia.

Além disso, a internet dá palco para que as pessoas se apresentem de maneiras distorcidas (inclusive por filtros que as embelezam) e alimentem a egolatria, encorajando a se passar horas a fio contemplando a própria imagem. As redes sociais ajudam no fortalecimento deste processo, compensando comportamentos narcisistas. Afinal de contas, a autopromoção provoca maior engajamento e atrai muitos seguidores. Para que estudar e correr atrás de objetivos que demandem foco, dedicação e perseverança se posso ganhar muito dinheiro no tiktok?

Outro fator sociocultural que influencia fortemente na propagação do narcisismo é que vivemos numa era de idolatria de celebridades e pseudocelebridades. Reality shows fazem muito sucesso e costumam ser compostos por indivíduos que gostam muito de se exibir, demonstrando genuíno prazer em aparecer. Esses são os ídolos de uma era.

Como em toda epidemia, agentes transmissores propagam um vírus. No caso do narcisismo, celebridades exercem essa função, tornando seu próprio narcisismo um fator de admiração e de influência social. Não à toa, o Big Brother faz tanto sucesso. Ser um ex-BBB costuma atrair milhões de seguidores. Se você der uma espiada no Instagram de algum participante aleatório do reality mais famoso do Brasil, provavelmente encontrará uma página recheada de selfies e de fotos do próprio corpo.

Considerações finais

Pode-se perceber que um traço multifacetado da personalidade como o narcisismo se forma por uma constelação de padrões de comportamento que, num primeiro momento, podem não ser percebidos como relacionados entre si.

Querer dominar o mundo, ser o centro das atenções ou ter uma obsessão pela própria aparência são comportamentos que parecem distintos. Contudo, em perfis com alta pontuação em narcisismo, eles costumam aparecer agrupados.

Vimos que vaidade, arrogância, grandiosidade, egocentrismo, pouca empatia, desejo de dominância, megalomania e senso de merecimento costumam formar a composição básica deste combo, sendo desproporcionalmente inflados e trazendo debilitantes consequências para as relações de modo geral.

O narcisismo é fator de risco para comportamentos agressivos e violentos com pessoas próximas, tanto no âmbito pessoal quanto profissional, levando a reações desproporcionais às mínimas críticas. Considerando todos os fatores socioculturais acima mencionados, uma questão que se coloca é a seguinte: a incivilidade decorrente do narcisismo está se tornando cada vez mais recorrente?

O anonimato da internet dá a oportunidade de as pessoas liberarem suas pulsões mais sombrias. Não considerar os efeitos de nossas ações sobre os outros traz consequências sociais que impactam na saúde mental. Xingamentos online, cyberbullying, fazer cara feia para professores que pedem para não olhar o celular durante a aula, hostilidade e trapaças estariam sendo naturalizados? Numa era de relacionamentos líquidos e em que tudo é “pra ontem”, trair e trocar de parceiros numa permanente busca de autossatisfação centrada no próprio umbigo diminui a profundidade das conexões. Relacionamentos com narcisistas podem ser particularmente dolorosos para aqueles que por eles se apaixonam e se apegam. Os parceiros amorosos servem como troféus a serem expostos, porém são intercambiáveis se sua “cotação de mercado” baixar.

Amor, cuidado, responsabilidade, comprometimento e lealdade são atributos centrais de uma relação saudável, porém narcisistas se preocupam é com a sua satisfação egóica. A cultura pode reforçar esse padrão ao normalizar relações superficiais e objetificar seres humanos.  Importante que fiquemos atentos a essas armadilhas psicológicas.

Referências:

Generation Me, de Jean Twenge. New York: Atria Paperback, 2006.

The Narcissism Epidemic – living in the age of entitlement, de Jean Twenge & Keith Campbell. New York: Atria Paperback, 2009.

The New Science of Narcissism – understanding one of the greatest psychological challenges o four time, de Keith Campbell & Carolyn Crist. Boulder: Sounds True, 2020.

Terapia Cognitiva dos Transtornos da Personalidade, de Aaron Beck et al. Porto Alegre: Artmed, 2017.  

Autor(a)
Sally Gomes
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