6/27/2023
Evolução

O essencialismo e a resistência à teoria da evolução

A tradição tibetana realiza um curioso procedimento de transição de governo após a morte do seu líder máximo, o Dalai Lama. Sua comitiva junta os pertences pessoais do finado líder e inicia uma missão cujo objetivo é encontrar a criança que o substituirá. Durante as visitas, os tais objetos são levados e apresentados às crianças, cujo comportamento é observado atentamente, como numa pesquisa científica. Duplas de objetos são apresentadas: um que pertencei à Vossa Santidade e outro aleatório, um controle para testar se a criança vai, vez após vez, adivinhar qual dos objetos pertenceu ao líder religioso. A criança que mais acuradamente reconhece os objetos do Dalai Lama é declarada como sua reencarnação.

Introdução

"É quase como se o cérebro humano tivesse sido

projetado especificamente para não entender o

darwinismo e para considerá-lo difícil de aceitar"

(Dawkins, 1987, p. xi)

A tradição tibetana realiza um curioso procedimento de transição de governo após a morte do seu líder máximo, o Dalai Lama. Sua comitiva junta os pertences pessoais do finado líder e inicia uma missão cujo objetivo é encontrar a criança que o substituirá. Durante as visitas, os tais objetos são levados e apresentados às crianças, cujo comportamento é observado atentamente, como numa pesquisa científica. Duplas de objetos são apresentadas: um que pertencei à Vossa Santidade e outro aleatório, um controle para testar se a criança vai, vez após vez, adivinhar qual dos objetos pertenceu ao líder religioso. A criança que mais acuradamente reconhece os objetos do Dalai Lama é declarada como sua reencarnação.

A crença na reencarnação e nas propriedades mágicas de objetos tocados por figuras de destaque são encontradas em muitas culturas. Pense no Papa, a autoridade máxima da Igreja Católica, visitando alguma multidão. Os fiéis se esforçam para tocar o pontífice. Na Idade Média, proliferavam pedaços de supostas relíquias sagradas, de santos sudários a pedaços da suposta cruz na qual Jesus teria sido crucificado. Isso não é muito diferente da intenção por trás do uso cotidiano de crucifixos, figas e óleos abençoados supostamente vindos de Israel.

De alguma forma, as pessoas parecem acreditar em propriedades mágicas de objetos e de indivíduos. É como se houvesse uma quintessência, um núcleo irredutível de poder que sobrevive à morte e pode até mesmo se projetar nos pertences materiais dos já falecidos.

Mas não se engane, isso não é coisa de mentes supersticiosas -- ao menos não necessariamente. O mundo secular não é muito diferente.

Por exemplo, a maioria das pessoas diria que a Mona Lisa original vale mais do que uma cópia idêntica dela. Se o valor estivesse apenas na qualidade da peça, uma cópia idêntica valeria tanto quanto a original. É como se ter passado pelas mãos do artista conferisse uma propriedade a mais que garantisse sua legitimidade e valor.

Seculares ou religiosas, essas crenças têm algo em comum: objetos, fenômenos e pessoas possuiriam uma essência, algo que garantisse sua singularidade e sua diferença categórica em relação a outros objetos, fenômenos e pessoas. Em alguns capazes, esse núcleo inefável seria capaz de sobreviver à morte.

Mas as essências não necessariamente são entidades inefáveis ou sobrenaturais. O mundo científico está cheio delas. Pergunte a um químico por que água é água. Ele provavelmente dirá que água é pela sua composição química, isto é, H2O. Fazemos o mesmo com organismos vivos. Eles são o que são, essencialmente, por causa de seu DNA. Os processos causais que tornam o gato o que ele é são deflagrados desse núcleo fundamental, o seu genoma, portanto reside ali a sua essência.

O essencialismo está na raiz da nossa maneira de responder aos dilemas do mundo natural, mas também está na raiz de muitas das nossas dificuldades de entendimento. Por exemplo, pessoas resistem à doação de órgãos porque pensam que o órgão doado virá com algum resquício da personalidade do doador. Do mesmo modo, pensar em grupos humanos como essencialmente diferentes parece aumentar várias formas de discriminação, como a racial.

É basicamente isso que está por trás da dificuldade de compreender e de aceitar a teoria da evolução das espécies por seleção natural. Para além da falta de conhecimento sobre o assunto, há também uma dificuldade de entendimento inerente ao modo como a mente humana funciona. Esse não é um problema trivial enfrentado por leigos, tanto que biólogos e educadores às vezes penam para compreender como se dá a evolução. Nas linhas que se seguem, explicarei as raízes do modo de pensar essencialista e como isso atrapalha o entendimento da seleção natural.

O que são essências?

Antes de qualquer coisa, o que é uma essência? Essências são propriedades necessárias para dotar um objeto, ser ou fenômeno de uma identidade específica. As propriedades não-essenciais, por outro lado, são aquelas que podem estar presentes ou não sem que isso afete a identidade do objeto, ser ou fenômeno (são acidentais). É como no exemplo da água. Se modificar sua molécula básica (tirando um H, por exemplo), aquilo vai deixar de ser água.

O essencialismo nas teorias científicas

De Aristóteles aos criacionistas

O essencialismo também aparece em explicações biológicas. Pense no conceito de espécie. Você pode não tem conhecimentos técnicos, mas sabe que dois grupos de animais são considerados como espécies diferentes porque são radicalmente diferentes entre si. Existe algo fundamental, fixo e imutável que faz você pertencer a uma espécie e não a outra. Isso é tão óbvio que foi o raciocínio predominante na biologia desde Aristóteles até o século XIX (Ereshefsky, 2022; Mayr, 1982). Gatos teriam uma "gatidade" e cães uma "cachorridade", o que os tornaria classes categoricamente (essencialmente) separadas entre si. Esse raciocínio é aproveitado pelo mundo cristão medieval e, posteriormente, pelos adeptos do criacionismo ou design inteligente.

A insistência do essencialismo

Milênios depois de Aristóteles já eram conhecidos muitos exemplos que contrariavam as previsões aristotélicas. Muito antes de Darwin já conhecia-se a hibridização, isto é, a reprodução entre indivíduos de espécies difentes, sugerindo que ambas as duas eram diferentes, mas talvez não categoricamente.

A mesma coisa serve para a microevolução. Qualquer criador de animais sempre soube que era possível modificar levemente as características de uma prole fazendo reproduções seletivas (digamos, fazendo com que um casal de aves mais mansos que a média se reproduzisse). Era esse o princípio dos criadores de aves nos quais o próprio Darwin se inspirou para pensar na seleção natural. Eles criavam proles inteiras de animais com plumagens conspícuas "brincando" com essas reproduções seletivas. O próprio monge Gregor Mendel fazia isso com ervilhas.

O que ninguém considerava ainda era uma mudança mais essencial em relação à natureza do que se considerava uma espécie.

Uma rachadura apareceu entre o século XVIII e XIX, com Jean-Baptiste Lamarck, o primeiro evolucionista famoso antes de Darwin ganhar a fama quase um século depois com sua obra. Lamarck era um "transmutacionista" (o termo evolução ainda não existia), isto é, ele acreditava que uma espécie podia dar origem a outra, mas isso se daria por uma espécie de transformação de uma espécie na outra. Espécies ainda eram categorias essencialistas, mas não mais fixas. Darwin "atravessou o rubicão" de tal forma que não faria mais sentido nem propor uma transformação de uma espécie na outra.

O princípio básico da seleção natural proposta por Charles Darwin não é tão difícil de entender. Ele juntou várias informações já conhecidas, mas que não tinham sido conectadas ainda. Darwin propôs que indivíduos de uma mesma espécie variavam sutilmente em relação às suas características. Essas características seriam hereditárias. A variação da característica que conferisse alguma vantagem adaptativa acabaria aumentando de frequência naquela população porque seus portadores deixariam mais descendentes. Pode não parecer, mas isso muda tudo.

A partir de então, espécies deixam de ser categorias essencializadas e se tornam pontos arbitrários num espectro de cores. Assim como não se pode dizer onde a cor amarela se torna laranja num espectro, fica difícil dizer onde indivíduos de uma dada espécie mudam o suficiente para serem classificados como outra. O que se tem é uma mudança gradual. Espécies só parecem categorias fixas para nós porque temos a visão de um recorte temporal específico. Se pudéssemos ver, como num rio congelado, geração após geração de descendentes de uma espécies, veríamos que eles vão variando lentamente, sendo empurrados pela seleção natural em direção a características mais adaptadas às demandas de seu ambiente. Não é que as essências vão mudando. Na verdade, não há essência de forma alguma.

A noção de essência é largamente considerada um supérfluo explicativo na biologia, mas há tentativas na filosofia de ressuscitar o assunto. Um autor específico chega a argumentar que essências não são inefáveis, nem fixas ou eternas, mas sim condições necessárias para que uma espécie tenha as características que têm. Isso não implicaria em negar o que talvez seja agora um fato na biologia: organismos têm propriedades relacionais. Por exemplo, ter um genoma é necessário para se ter um organismo, mas os processos necessários para a sustentação das atividades do organismo não se resumem ao genoma. Os processos são todos relacionais entre os mecanismos do próprio organismo e destes com o ambiente.

Essas propostas elencadas cronologicamente sugerem que a insistência do essencialismo talvez não se deva ao seu mérito explicativo, mas sim à existência de intuições psicológicas sempre nos empurrando para esse template explicativo.

Essencialismo psicológico

A persistência do essencialismo provavelmente se deve ao modo como a mente humana funciona. Se isso for verdade, então essa tendência terá uma história de desenvolvimento tanto ontogenético quanto filogenético.

Uma tendência que se revela cedo no desenvolvimento

Crianças são essencialistas natas. Em idade pré-escolar, já diferenciam seres animados de inanimados e assumem que os seres vivos possuem algum tipo de natureza intrínseca inefável, algo difícil de explicar, mas que está lá e permanece mesmo que partes externas do animal sejam modificadas. Aos 4 anos, elas explicam a diferenciação entre seres animados e inanimados através da capacidade de se mover de forma autônoma que os seres vivos têm. Com 14 meses, com as explicações mais rebuscadas, as crianças associam essências a mecanismos internos do organismo.

Essas intuições são eficientes, mas levam a conclusões erradas sobre o funcionamento do mundo natural. Por exemplo, por associarem movimento autônomo à vida, crianças de 4 anos ou menos pensam que plantas são seres inanimados. O mesmo tipo de dificuldade se apresenta no entendimento da teoria da evolução.

O impacto do essencialismo psicológico no entendimento da evolução

Para começar, a maioria das pessoas não aceita bem a existência de variações individuais. Elas tendem a pensar que espécies são muito mais homogêneas do que realmente são. Quando aceitam tal variação, consideram-nas ruídos acidentais (essencialmente, pássaros voam, mas um pássaro pode não voar por causa de algum problema específico). Crianças tendem a ter essa dificuldade, que continua na idade adulta.

Informar já é alguma coisa, mas não resolve todo o problema. Depois de aprender um pouco sobre a teoria da evolução, adultos tendem a aceitar melhor a existência de variações intraespecíficas, o que aumenta sua compreensão sobre o processo evolutivo. Mas eles continuam pensando de forma essencialista em muitos casos. Nesse sentido, podemos dividir os adultos em três tipos. Os fixistas são essencialistas ferrenhos que podem nem mesmo acreditar em microevolução. Para eles, as espécies têm a mesma forma atual desde o início dos tempos. Os transformacionistas são os evolucionistas do senso comum: eles aceitam que existem variações individuais, talvez até digam vagamente que concordam que há especiação, mas na prática pensam que uma espécie vira outra, que a essência de uma se transforma na de outra -- o que na prática não impede o mito de que um indivíduo de uma espécie simplesmente dá à luz um bicho completamente diferente, já membro de outra espécie. Variacionistas são mais raros. Eles aceitam as consequências mais contraintuitivas da seleção natural.

As intuições essencialistas dos adultos são formadas pela interação entre tendências psicológicas inatas e exposição a certos estímulos. Curiosamente, crianças de 3 anos aceitam melhor a possibilidade de especiação do que as de 7 anos, mas o cenário muda diante da exposição à metamorfose das lagartas em borboletas. É como se a experiência ao longo dos primeiros anos de vida fizesse as crianças desenvolverem uma percepção mais fixista dos animais. Mas ver a metamorfose da lagarta em borboleta ajuda a relativizar esse esquema rígido que elas criam por experiência. Mas generalizar esse aprendizado para situações ligadas ao processo de seleção natural é mais difícil. A interrupção do raciocínio essencialista requer esforço, requer uso das funções executivas para constantemente suprimir as intuições essencialistas, e isso acontece mesmo com aqueles que entendem do assunto.

Driblando o essencialismo

Mas e aí? Existe alguma maneira de driblar a tendência ao essencialismo? Para contornar o essencialismo não basta explicar a seleção natural, é preciso ensinar a mecânica da coisa. Uma maneira de fazer isso é explicar a evolução sem falar da função desempenhada pelos traços ou partes do corpo. Quando se fala em função, as pessoas pensam que "olhos servem para enxergar, portanto foram criados dessa forma para esse propósito". Essa heurística dificulta o entendimento de que o processo evolutivo é cumulativo e bagunçado. Estruturas selecionadas originalmente por um motivo se juntam a outras para cumprir outra função adaptativa e assim por diante. Não é um processo limpo, é mais como Victor Frankenstein criando seu monstro.

A função adaptativa das intuições essencialistas

Se o essencialismo leva a tantos problemas, por que diabos temos a tendência tão irresistível de funcionar desse modo? Por que atribuímos essências a objetos, organismos e fenômenos? É simples: somos assim porque funciona.

O essencialismo confere uma vantagem clara: permite inferir precisamente uma série de fenômenos, prever cenários e o comportamento de seres vivos tendo uma quantidade limitada de informações. É como num dos exemplos citados acima. Crianças não precisa de muitas experiências com animais pra desenvolver a intuição de que "se tem asa é porque voa". Ver lagartas virando borboletas pode ajudar a flexibilizar isso, mas a verdade é que poucos animais se caracterizam por mudanças tão abruptas, então o essencialismo psicológico segue tendo um poder heurístico muito maior. Pode parecer algo banal, mas isso pode fazer a diferença num contexto onde os perigos são mais constantes do que na nossa realidade. Por exemplo, pensar de modo essencialista permite generalizar a aparência de um cogumelo venenoso para evitar comê-lo sem ser preciso prová-lo. Permite se afastar preventivamente de animais que podem ser venenosos ou agressivos. Quando o risco de vida é elevado, é melhor prevenir do que remediar.

Conclusão

O essencialismo faz parte do nosso modo de pensar. Isso não vale só para o cotidiano, mas para a história da ciência. A história da ciência mostra como revolução atrás de revolução as nossas estruturas de pensamento continuam sendo projetadas sobre a realidade para entender como a natureza funciona. Isso funciona até certo ponto. O aprofundamento do conhecimento sobre o mundo natural parece ter um preço: precisamos cada vez mais de uma ginástica mental para entender como a realidade é contraintutiva. A teoria da evolução explica a história dos seres vivos dessa maneira contraintuitiva porque nosso aparato psicológico foi moldado para resolver problemas com duração histórica mais restrita. Evoluímos para pensar no nosso tempo histórico, no tempo de uma vida, não no tempo de incontáveis gerações. Assim, se quisermos realmente entender como a realidade funciona, devemos tatear com cuidado onde pisamos, utilizando com cuidado a bengala da intuição.

Referências

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Harden, K. P. (2023). Genetic determinism, essentialism and reductionism: semantic clarity for contested science. Nature Reviews Genetics, 24(3), 197-204.

Keil, F. C.Concepts, kinds, and cognitive development1989 Cambridg, MA: MIT Press.

Ronfard, S., Brown, S., Doncaster, E., & Kelemen, D. (2021). Inhibiting intuition: Scaffolding children's theory construction about species evolution in the face of competing explanations. Cognition, 211, 104635.

Waxman, S., Medin, D., Ross, N. Folkbiological reasoning from a cross-cultural developmental perspective: Early essentialist notions are shaped by cultural beliefs. Developmental Psychology2007 43 294–308.

Autor(a)
Felipe Novaes
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