5/26/2023
Criatividade

O mito do gênio louco

“Criatividade é uma loucura divina, um presente dos deuses” ~ Platão. Você já deve ter ouvido falar em John Nash e Vincent van Gogh. Os dois são geniais, cada um em sua área. Eles aparecem nos aclamados Uma Mente Brilhante e n'O Portal da Eternidade, respectivamente...
“Criatividade é uma loucura divina, um presente dos deuses” ~ Platão

Você já deve ter ouvido falar em John Nash e Vincent van Gogh. Os dois são geniais, cada um em sua área. Eles aparecem nos aclamados Uma Mente Brilhante e n'O Portal da Eternidade, respectivamente. Nash foi um matemático, trabalhou com teoria dos jogos, gerando contribuições em múltiplas áreas, desde a biologia até as ciências sociais. van Gogh foi um pintor eminente. Suas quase mil telas em óleo, que iam de retratos a paisagens naturais, ajudaram a moldar um novo estilo artístico.

A genialidade não era a única coisa que eles tinham em comum: ambos sofriam de transtornos psicóticos. John Nash foi diagnosticado como esquizofrênico, passando parte de sua vida às voltas com os sofríveis tratamentos psiquiátricos de meados do século XX, basicamente tratamentos psicanalíticos que surtiam pouco efeito sobre quadros graves desse tipo -- segundo nos conta a jornalista Sylvia Nasar, autora do livro que inspirou o filme sobre o matemático. Já van Gogh, possivelmente, sofria de bipolaridade, apesar de haver ainda quem suspeite do diagnóstico de esquizofrenia.

Psicopatologia e genialidade se manifestaram nesses dois por mera coincidência? Não é de agora que se suspeita da ligação entre genialidade e psicopatologia. Platão já considerava, poeticamente, a criatividade como uma "loucura divina". Mais recentemente, popularizou-se a ideia de que a criatividade seria própria de um estado de tensão e assincronia com a realidade. Pessoas menos adaptadas sofreriam, o que levaria a um novo olhar sobre as coisas. E quem sofreria mais do que quem tem alguma desordem psicológica?

Mas o que as análises mais aprofundadas têm a nos dizer? A criatividade disruptiva de Nash, van Gogh e muitos outros se daria por causa ou apesar da psicopatologia?

Criatividade

Você sabe reconhecer uma pessoa criativa. Elas são originais, imaginativas, flexíveis, diferenciadas. As definições técnicas não se desviam muito dessa percepção do bom e velho senso comum.

Tecnicamente, a criatividade é definida como a capacidade de produzir trabalhos originais e úteis em dado contexto. Por exemplo, tornar o teletransporte um meio de transporte viável seria considerado um feito incrivelmente criativo pela sua originalidade, além de útil por melhorar a mobilidade das pessoas. Entretanto, inventar um carro com rodas em formato de losango não seria nada útil, apesar de ser original. Portanto, nesse caso, seria difícil classificar essa engenhoca como um baita feito criativo, pois ela não passaria de uma "ideia de jerico".

A criatividade pode ser medida de várias formas. Existem tarefas experimentais que medem a originalidade das respostas ou soluções de determinado problema, como completar o mais originalmente possível um desenho feito pela metade. Também são usadas escalas que mensuram as tendências criativas da personalidade e a frequência de engajamento em tarefas criativas no cotidiano.

A criatividade não é distribuída igualmente entre as pessoas. Sua variação na população se dá na forma de uma curva normal, com a maioria das pessoas sendo medianamente criativas e nos extremos aqueles que são anormalmente criativos ou anormalmente pouco criativos.

Criatividade e psicopatologia: uma vulnerabilidade compartilhada?

Existem engrenagens psicológicas que geram os comportamentos que no final das contas usamos para inferir a criatividade. Entender o que está por trás da personalidade é útil para saber o que faz de algumas pessoas fora da curva nesse traço, mas também para entender sua relação com algumas psicopatologias.

O primeiro passo é entender que trata-se de um processo de associação de ideias.

Pense na criatividade como um processo darwiniano. Como na seleção natural, a criatividade depende de variação submetida a alguma seleção baseada em algum critério. As melhores associações sobrevivem. Pessoas mais criativas têm mais material disponível para gerar as associações (o que depende não da criatividade em si, mas da facilidade de aprender gerada pela inteligência ou desempenho cognitivo). Além disso, são capazes de ligar ideias mais distantes entre si numa rede semântica. Isso se parece com a produção de metáforas: une-se elementos de domínios conceituais diferentes que compartilham uma mesma lógica de funcionamento. Quanto maior a distância semântica ou de domínio entre esses elementos, maior a criatividade.

Por exemplo, diante da palavra "montanha" a maioria dos cariocas lembrará de "Pão-de-açúcar", mas um carioca criativo poderia fazer uma associação conceitualmente mais distante e pensar em nas divindades xintoístas das cadeias montanhosas do Japão. Isso se chama pensamento divergente.

Indivíduos altos em pensamento divergente funcionam diferente até em estado de repouso. Seu cérebro está o tempo todo estabelecendo conexões inusitadas porque há maior hiperatividade na rede do que na média da população. Eles devaneiam, sonham acordados. Há menos inibição na produção das associações, o que dá uma tonalidade de selvageria e adrenalina ao processo, como um cavalo sem rédeas balançando a crina por aí.

Pode não ser coincidência que pessoas com certas psicopatologias funcionem dessa mesma maneira. É basicamente esse processo que está na base das alucinações e delírios de pacientes esquizofrênicos. É o que ocorre também na capacidade de pacientes bipolares em notar padrões que só eles parecem ver. É como se houvesse uma superinclusão de elementos nas suas conexões semânticas. Essa superinclusão pode levar à genialidade (pois percebem padrões que outros não percebem) ou a algum grau de desconexão com a realidade (pois forjam padrões que na verdade não existem).

É preciso uma dose de transtorno de humor para ser criativo?

Parece haver realmente uma relação entre criatividade e bipolaridade. A bipolaridade é mais comum entre pessoas criativas (escritores, poetas e artistas visuais) do que na população em geral. As evidências vêm tanto de análises historiométricas de personalidades já falecidas, estudos de caso com artistas vivos e estudos envolvendo pessoas com diversas profissões na população em geral.

Uma análise de dados biográficos concluiu que, entre músicos de jazz, 28% dos mais eminentes "definitivamente ou provavelmente" tinham algum transtorno de humor. Um levantamento com mais de 1.000 indivíduos mencionados no New York Times Book Review, entre 1960 e 1990, mostrou que os artistas tinham significativamente mais chances de vivenciar depressão e/ou mania ao longo da vida.

O contrário também parece verdadeiro: bipolares se mostram mais criativos do que quem não tem o transtorno. Por exemplo, pacientes bipolares dão usos mais variados para objetos, uma medida de pensamento divergente.

Bipolares abundam em profissões artísticas. Setores da arte que dão margem a um maior pensamento divergente têm ainda maior prevalência de pacientes bipolares. É o caso das artes visuais e da poesia. Áreas com menos regras tiram maior proveito do pensamento divergente, o que explica a arquitetura poder envolver certa expressão subjetiva, mas ter uma menor prevalência de bipolares. Já na poesia há maior liberdade criativa, favorecendo pessoas funcionalmente originais e também aquelas que estão a beira do caos recombinatório.

O mesmo ocorre na ciência. Há, comparativamente, menor prevalência de transtornos em cientistas do que em artistas. A existência de regras no trabalho científico ajuda a frear o pensamento divergente. Criatividade é necessária para criar boas hipóteses e bons experimentos, mas até certo ponto. Na arte, a autoexpressão livre e desimpedida é permitida bem mais do que na ciência, o que favorece o livre fluir das associações que subjazem o processo criativo. O negócio da ciência não é a autoexpressão, mas a descoberta de como a realidade funciona, como num trabalho investigativo qualquer.

Esquizofrenia e criatividade

Parte do funcionamento da esquizofrenia está presente no modo de funcionamento de pessoas altamente criativas. Esquizofrênicos têm experiências subjetivas incomuns, como ilusões, alucinações, atenção e concentração limitadas. Isso tudo contribui para o menor controle sobre a rede associativa, gerando novas ideias e associações num ritmo frenético. Pessoas criativas não têm alucinações, mas sonham acordadas e têm insights súbitos.

Mas a associação entre criatividade e esquizofrenia não é muito clara. Alguns estudos mostram que esquizofrênicos tendem a ser mais criativos, enquanto outros revelam o contrário. Uma metanálise recente mostrou que quanto mais intensos os sintomas, menor a criatividade. Como veremos adiante, faltam na esquizofrenia alguns fatores protetivos que corroem a criatividade.

A gráfico do U invertido: "menos é mais"

Gênios são loucos? A resposta é mais complexa do que sim ou não. A criatividade depende de mecanismos que são compartilhados e avantajados em certos transtornos. Isso significa que alguém muito criativo pode, em alguns momentos, lembrar um paciente bipolar. Do mesmo jeito, um bipolar leve pode lembrar uma pessoa "só" criativa. O problema começa com a gravidade dos sintomas. Processos que gerariam uma criatividade saudável acabam saindo dos trilhos, gerando rigidez cognitiva e dissociação da realidade.

A relação entre psicopatologia e criatividade pode ser representada como um gráfico com a forma de um U invertido. Até certo ponto, os processos compartilhados por pessoas criativas suadáveis, bipolares e esquizofrênicos levam á criatividade, mas quando elevados depois de certo grau, passam a ter efeitos contrários.

O efeito compensatório da inteligência

Você deve estar se perguntando como John Nash se tornou proeminente como matemático sendo esquizofrênico. A resposta é que sua alta inteligência deve ter amenizado os efeitos corrosivos do transtorno até certo ponto, como uma estrela fazendo força contra sua própria gravidade, impedindo sua implosão por um tempo, não para sempre. É exatamente assim que funciona. Um elevado desempenho cognitivo serve como um freio saudável aos sintomas. Mas esse freio não dura infinitamente dependendo da gravidade do quadro. John Nash conseguiu produzir o suficiente antes de ir ladeira baixo.

Conclusão

Uma vez perguntaram para o matemático John Nash como um gênio como ele poderia acreditar que tinha sido recrutado por alienígenas para salvar o mundo. Ele respondeu que suas ideias sobre seres sobrenaturais vêm do mesmo lugar que seus insights matemáticos. Errado não estava.

Esse episódio retrata perfeitamente bem a natureza da relação entre criatividade e psicopatologia. A criatividade cotidiana, dentro da normalidade, tem a ver com flexibilidade na resolução de problemas e qualidade de vida. O indivíduo controla o processo e usa a seu favor de forma pragmática. Mas a criatividade com C maiúsculo dos gênios é diferente. É estar na fronteira entre a Ordem e o Caos. É surfar nas ondas de um mar revolto de puro caos, tentando permanecer em pé na prancha para, assim, não ser levado pela maré revolta dos processos associativos intensos e incontroláveis.

Autor(a)
Felipe Novaes
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